Muitos se admiram de que na Terra haja tanta maldade e
tantas paixões grosseiras, tantas misérias e enfermidades de toda
natureza, e daí concluem que a espécie humana bem triste coisa é. Provém
esse juízo do acanhado ponto de vista em que se colocam os que o emitem
e que lhes dá uma falsa idéia do conjunto. Deve-se considerar que na
Terra não está a Humanidade toda, mas apenas uma pequena fração da
Humanidade. Com efeito, a espécie humana abrange todos os seres dotados
de razão que povoam os inúmeros orbes do Universo. Ora, que é a
população da Terra, em face da população total desses mundos? Muito
menos que a de uma aldeia, em confronto com a de um grande império. A
situação material e moral da Humanidade terrena nada tem que espante,
desde que se leve em conta a destinação da Terra e a natureza dos que a
habitam.
Faria dos habitantes de uma grande cidade falsíssima ideia quem os julgasse pela população dos seus quarteirões mais íntimos e
sórdidos. Num hospital, ninguém vê senão doentes e estropiados; numa
penitenciária, vêem-se reunidas todas as torpezas, todos os vícios; nas
regiões insalubres, os habitantes, em sua maioria são pálidos, franzinos
e enfermiços. Pois bem: figure-se a Terra como um subúrbio, um
hospital, uma penitenciaria, um sítio malsão, e ela é simultaneamente
tudo isso, e compreender-se-á por que as aflições sobrelevam aos gozos,
porquanto não se mandam para o hospital os que se acham com saúde, nem
para as casas de correção os que nenhum mal praticaram; nem os hospitais
e as casas de correção se podem ter por lugares de deleite.
Ora, assim como, numa cidade, a população não se
encontra toda nos hospitais ou nas prisões, também na Terra não está a
Humanidade inteira. E, do mesmo modo que do hospital saem os que se
curaram e da prisão os que cumpriram suas penas, o homem deixa a Ferra,
quando está curado de suas enfermidades morais.
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